Ponte Jornalismo | ‘Com aval de deputados, Doria manipula orçamento para favorecer Judiciário e Ministério Público’

Por Caê Vasconcelos
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Para Luciana Zaffalon, coordenadora-geral da plataforma Justa.org.br, sistema de justiça tem sido privilegiado. Levantamento aponta “cheques em branco” de R$ 41,8 bi em SP na lei orçamentária de 2021

Leia a entrevista:

Ponte – Para que o leitor entenda: o que é o orçamento estadual e por que ele precisa ser aprovado pela casas legislativas?

Luciana Zaffalon – É para decidir como o nosso dinheiro vai ser gasto que existe a Lei Orçamentária Anual, que define quanto vai para a educação, para a segurança pública e para a saúde, por exemplo.

O nosso desenho democrático divide o funcionamento do estado em 3 partes: o Executivo (prefeitos, governadores e presidentes), o Legislativo (câmaras municipais, assembleias e congresso nacional) e o Poder Judiciário, que, junto com Ministério Público e Defensoria Pública, compõe nosso sistema de justiça.

Cada um precisa cumprir o seu papel: a Assembleia aprova as leis, e o Governo realiza a administração pública respeitando essas leis e o sistema de justiça é o responsável pela resolução dos conflitos.

Com relação ao orçamento público, ele deve sempre ser proposto pelo Executivo e debatido pelo Legislativos, que tem a atribuição de aprovar os gastos.

Ponte – Como tem sido essa divisão no governo Doria? O problema tem sido por ordens do governador ou da Alesp?

Luciana – Todo ano, o governador propõe um projeto de orçamento, as deputadas e deputados da Assembleia Legislativa debatem esse projeto e propõem mudanças antes que ele vire lei. Assim, a LOA é aprovada e o orçamento estadual para o ano seguinte é definido.

A LOA é estruturada a partir da expectativa de arrecadação do ano seguinte, mas, com a natural variação deste montante, o governo remaneja a distribuição dos recursos e essas mudanças também deveriam ser debatidas pelos deputados, como determinam as Constituições do Estado de São Paulo (Art. 175) e Federal (Art. 167, inciso V).

Mesmo diante das vedações constitucionais, todos os anos, as Leis Orçamentárias têm permitido que os governadores distribuam mais dinheiro do que o planejado, sem passar pela Assembleia. Aqui começam os problemas: ao autorizar a abertura desses chamados créditos adicionais diretamente pelo Executivo, a LOA, na prática, confere um “cheque em branco” para que os governadores negociem verbas públicas a portas fechadas, dialogando apenas com os setores interessados.

O problema é de responsabilidade tanto do Governo (que é quem encaminha o projeto de lei orçamentária para Aesp) quanto da Assembleia, que não só poderia, como deveria alterar a proposta do governo, mas está aprovando o projeto nestes termos.

Vale dizer que uma das principais atribuições da Assembleia é justamente essa: debater e aprovar os gastos do Estado. Ao abrir mão de sua competência para definir como o dinheiro público vai ser investido as deputadas e deputados transferem pro governo parte considerável do seu poder. Eles estão dando aval para Doria manipular o orçamento e favorecer Judiciário e Ministério Público.

Como apontamos no levantamento realizado pela Justa em parceria com a Iniciativa Negra, a proposta de LOA/2021 (Art. 9), que foi aprovada em 17 de dezembro de 2020 pela Alesp, conferiu ao governo de São Paulo um cheque em branco no valor de R$ 41,8 bi (17% do orçamento total de R$246,3 bi), o que corresponde a 42 vezes o que é previsto para o orçamento da cultura, 1,5 vezes o orçamento da saúde ou 46 vezes o previsto para assistência social.

Mesmo somando todos os valores destinados a atendimento hospitalar e ambulatorial (R$4,4 bi), habitação (R$961,8 mi), comércio e serviços (R$747,5 mi), indústria (R$7,4 mi), agricultura (R$1,5 bi), ciência e tecnologia (R$1,5 bi), saneamento (R$504 mi) e outras sete funções de inegável importância no orçamento estadual, ainda não se alcança os R$ 41,8 bi.

Ponte – Qual a importância do orçamento para as políticas públicas estaduais?

Luciana – Sem orçamento não é possível falar em políticas públicas efetivas. Você pode ter o melhor desenho imaginável para uma ação de Estado, sem dinheiro ela não sairá do papel.

Importante dizer que há esferas de funcionamento do Estado que são de competência Estadual, como é o caso das questões de segurança pública, prisional, funcionamento da justiça criminal são exemplos bem marcantes.

O que buscamos, com a Justa, é precisamente olhara para o orçamento como uma etapa necessária dos projetos de mudança que precisam ser concretizados.

Um exemplo disso é o enfrentamento do encarceramento em massa. Precisamos inverter o funil de investimento: tirar dinheiro da porta de entrada e investir na porta de saída. Não é possível seguir com tanto recurso alocado na expansão do número de vagas em presídios ou para a privatização do sistema prisional e não ter praticamente nada de dinheiros para garantir os direitos de quem sobrevive ao cumprimento da pena.

A LOA/2021 aprovada pela ALESP tem a seguinte proporção: a cada R$ 422,00 gastos com a manutenção do sistema prisional como ele é, apenas R$1,00 é destinado a assistência direta ao egresso.

Ponte – Áreas como segurança e sistema prisional vão ser atingidas com esses favorecimentos?

Luciana – Com a possibilidade de os governos decidirem sozinhos quando e como distribuírem os créditos adicionais, as discussões deixam de ser públicas, sem a transparência que as constituições estaduais e federal exigem. Quando isso acontece com o sistema de Justiça é ainda mais grave: os governos transferem, a portas fechadas, dinheiro a mais para as instituições que devem fiscalizar e julgar abusos e omissões do próprio Executivo.

Considerando os gastos de 2019, a Justa e a Iniciativa Negra apontam a magnitude dos valores recebidos pelas instituições de justiça só como créditos adicionais: em São Paulo, as suplementações do último ano somaram R$ 1,33 bi, sendo R$ 1,17 bi para o Tribunal de Justiça (TJSP), R$ 155 mi para o Ministério Público (MPSP) e R$ 4,9 mi para a Defensoria.

Estes valores correspondem a 8,6 vezes o orçamento total da TV Cultura, superam o orçamento total da FAPESP (R$ 1,31 bi) e são muito superiores aos orçamentos dos Hospitais das Clínicas: 31,8 vezes mais que o que o orçamento do HC de Marília, 4,8 vezes no caso do HC de Botucatu ou 2,5 vezes no caso do HC de Ribeirão Preto.

Com relação às folhas de pagamento, destaca-se que somam-se aos valores recebidos como créditos adicionais pelas carreiras jurídicas os remanejamentos internos realizados pelas próprias instituições. Como resultado, temos que o TJSP gastou só com pessoal R$ 1,2 bi a mais do que o aprovado pela Assembleia (LOA/2019). No caso do MPSP este valor foi de R$ 249 mi e na Defensoria paulista R$ 13 mi.

Ou seja: o Sistema de Justiça gastou, só com sua folha de pagamento, R$ 1,46 bi a mais do que previsto na LOA, o que corresponde a mais de duas vezes tudo que foi investido em habitação no Estado de SP em 2019 e a 85% a mais do investido em cultura. Na prática, a cada R$ 4,00 gastos com servidores da saúde, R$ 7,00 foram gastos com servidores da justiça.

Ponte – Podemos dizer que o governo prioriza investimento no sistema de justiça mais do que na educação e na saúde?

Luciana – Podemos dizer que o orçamento do sistema de justiça tem sido privilegiado com relação ao funcionamento de todo o estado. E essa priorização orçamentária das instituições de justiça pode ser observada no tempo: entre 2013 e 2019, enquanto o orçamento geral do estado de São Paulo cresceu 30,4%, o orçamento do TJSP cresceu 51,7%, o do MPSP cresceu 57,3% e o da Defensoria 46,8%.

Para se ter uma ideia, o Tribunal de Justiça sozinho recebe mais do que as 3 Universidades Estaduais recebem juntas (UNESP, Unicamp e USP), sendo que 80% dos seus recursos são consumidos só com folha de pagamento.

Quando olhamos pra saúde, o cenário é o mesmo: em 2019 (último ano com dados sobre gatos já consolidados) a cada R$ 4 gasto com servidores da saúde, R$ 7 foram gastos com servidores da justiça.

Os valores recebidos pelas instituições de justiça só de extras em 2019 são muito superiores aos orçamentos dos Hospitais das Clínicas do Estado: 31,8 vezes mais que o que o orçamento do HC de Marília, 4,8 vezes no caso do HC de Botucatu ou 2,5 vezes no caso do HC de Ribeirão Preto.

Leia a matéria na íntegra aqui.

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